Um Rascunho de Resenha para “Oração para Desaparecer”, de Socorro Acioli.

Silva Filho

Uma indicação meio atrapalhada do colega de trabalho me levou a esta adorável obra de Socorro Acioli. Atrapalhada porque eu e ele compartilhamos o gosto pela ficção científica e, em meio a algumas indicações do gênero, apareceu a Oração Para Desaparecer. Pensei que fosse uma obra de fantascienza e encomendei o livro pela internet.

Chegou bem quando estava me convalescendo de uma cirurgia e veio bem a calhar para me ajudar a passar os dias de inatividade. A leitura da primeira página me fez concluir por duas coisas com muita rapidez. A primeira é que não se tratava de uma obra de ficção científica. A segunda é que eu tinha em mãos um livro muito bom. Com efeito, o início da narrativa nos lança de sopetão em perplexidade. Não se delonga com apresentações e nos joga diretamente à situação dramática da exumação da protagonista. A forma me fez lembrar o também dramático início da “Metamorfose” de Kafka. Ou o falso epílogo contido no primeiro parágrafo de “Cem Anos de Solidão”, de García-Marques. Me conquistou de imediato.

O estilo de Socorro Acioli é bem próprio. Coloquial, desbocado, cearense. Mas, em meu julgar, ela tem uma pena muito boa. Sabe dar ritmo, tem elegância e sabe contar uma boa história. Logo percebe-se que o gênero filia-se ao realismo fantástico, tão em voga por estas terras sul-americanas no século passado. Justamente um filão que tanto amei ler na juventude! García-Marques, Jorge Luís Borges parecem conversar com a narrativa. Mais recentemente, vem a pena de Mia Couto. Este, aliás, expressamente mencionado nos agradecimentos. Mas gosto mais de Socorro Acioli do que Mia Couto. O mestre moçambicano é muito criativo e poético, contudo suas páginas decantam melancolia. Acioli é pura energia e bom humor. A verve cearense. As recordações que a leitura evoca não param: o enterramento da igreja de Almofala me remete ao sumiço do povoado de Mangue Seco, na novela “Tieta”. Ou ainda ao sumiço da vila de Macondo, em “Cem Anos de Solidão”. Socorro conversa com muitos nessa obra. Muito de sua riqueza está aí.

A história segue muito bem até quase seu final. Quando a protagonista retorna a sua terra natal, fiquei com a sensação de que muito foi sendo explicado. Até o que não precisava. Todo o mistério do livro foi sendo racionalizado e analisado sob os batuques dos tremembés. Coisa aliás que eles não fariam numa de suas lendas. Esse, talvez, seja o único elemento do livro que me pareça deficiente. Acho que “sobraram” algumas páginas em excesso ao final da história. Não sei, gosto do mistério e do implícito.

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Natal nas Galáxias

Desde menino sou apaixonado por ficção científica. Quando mamãe me levou ao cinema para assistir E.T., tinha apenas quatro anos de idade e não gostei. Fiquei assustado com a aparência do protagonista. Porém, poucos anos depois eu assistiria encantado “O Retorno do Jedi” em VHS, na casa de uma tia. O ano era 1984, o mesmo em que era lançada a adaptação cinematográfica de “Duna”. Também esse filme, que foi uma frustração comercial para seus produtores, me encantou. Passava as tardes ociosas me imaginando o personagem principal de uma saga que misturava elementos de Guerra nas Estrelas, Piratas do Espaço, Duna, entre outras sagas de fantascienza (deliciosa palavra cunhada pelos italianos para designar o gênero). Assim começou uma paixão que persiste teimosamente até os dias atuais.

Muito mudou no clima geral da ficção científica desde os tempos em que ela me cativou. Há cerca de 40 anos, predominavam histórias de um universo povoado de espécies múltiplas, que coexistiam, guerreavam, se aliavam ou mesmo tomavam drinques lado a lado em balcões de bares. A galáxia era o habitat e o domínio de muitos. As histórias tinham um quê de capa-e-espada, predominando o tom heróico ou romântico. Em tempos mais recentes, a temática tornou-se mais sombria, justamente com uma visão de universo alterada. Se antes a galáxia era habitada por criaturas com as quais os homens podiam interagir, hoje predominam ambientes mais inóspitos. Mesmo em casos nos quais o universo é plenamente habitado, o ambiente sideral passa longe de ser algo acolhedor. No cosmos imaginado por Cixin Liu em sua obra máxima “O Problema dos Três Corpos”, alguns dos personagens, em passagem crucial da saga, elaboram um conjunto de teoremas de sociologia espacial, onde as relações entre civilizações são explicadas pela analogia da floresta escura. Nela, cada uma cuida de se esconder e de eliminar quem aparecer em seus radares. Ambiente inóspito.

Nos últimos anos abundam imagens de um universo desértico. Recordo-me de “Interestellar”, onde a humanidade perscruta um universo estranho e silencioso. Ou de “Ad Astra”, no qual um astronauta enlouquece ao procurar em vão vida inteligente em exo-planetas. O conjunto de romances de James Corey, recentemente adaptados para o Netflix em algumas temporadas sob o título “The Expanse” também apresenta uma humanidade que entra em contato com uma antiga e extinta civilização, com a qual não pode mais interagir, mas somente visitar seus antigos mundos abandonados. Argumento parecido com aquele apresentado no já clássico romance de Carl Sagan “Contato”.

Acredito que o universo imaginário de um autor de ficção científica seja um reflexo de sua visão deste mundo e deste universo. À semelhança de um grande desmatamento seguido pela implantação de monocultura, a galáxia da fantasia científica sofreu uma brutal redução de sua biodiversidade em favor de um ambiente monótono. Palavras e conceitos exaustivamente repetidos no discurso público revelam grandes ausências daquilo que se proclama. O tanto que se fala em diversidade revela o quanto ela falta no Ocidente hoje, mas isso é assunto para outra conversa…

A mesma desolação que constato na ficção científica mais recente pode também ser observada na religiosidade do homem ocidental contemporâneo, o qual alterna posições de ateísmo, agnosticismo ou simplesmente uma indiferença com o mundo espiritual. Mesmo entre os cristãos, cresce uma visão de espiritualidade na qual toda e qualquer relação espiritual somente pode ser feita com o Deus supremo. Não há mediações, nem simplesmente interlocuções espirituais. A floresta deu lugar ao deserto ou à monocultura. No caso da fantasia, a galáxia deixou de ter uma gama de civilizações vivas para ser um grande e angustiante vazio, quando não um cemitério de mundos mortos. Curioso paralelismo. Há honrosas exceções, é claro. Recordo-me do interessante romance “Binti”, de autoria de Nnedi Okorafor, onde o universo está repleto de criaturas e espíritos. Coincidência ou não, a autora é de origem nigeriana. Alguém declarou recentemente que a África é o reservatório, a caixa d’água, de espiritualidade de um mundo desidratado…

Isso me dá o que pensar. Está chegando o Natal, tempo de recordar uma visita especial. Se levarmos tudo a sério, o que aconteceu na Palestina há cerca de 2000 anos é completamente inusitado. O cosmos foi visitado por seu criador. O universo passou a ser habitado por aquele que o projetou. E não simplesmente na forma de contemplação espiritual, mas na forma carnal de uma criatura pequena, frágil e mortal.

Me dá pena imaginar um universo desértico e desabitado. E celebrar o Natal é constatar justamente o contrário. Sob a luz das estrelas, à sombra das nebulosas, não há silêncio e morte, mas vida e a presença amorosa do Criador. Não há mais ausência. Há presença e companhia. Vivemos numa casa habitável. Olhando o presépio sob uma perspectiva galáctica, sinto gratidão pela companhia do dono em sua criação, seu projeto, sua propriedade. Dias atrás, um tio me contou que os antigos da roça costumavam dizer que uma casa, quando fica vazia, passa um pouco de tempo e seu telhado cai. A simples presença do morador preserva a solidez da cobertura das casas. Assim é nosso universo com o Natal: não se arruinará nem se tornará um lugar deserto, mas será pleno de vida e de amor.

Um feliz Natal!

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Medo da Inteligência Artificial? Pense bem nas premissas sobre as quais paira sua compreensão do Trabalho Humano

Circula por aí um temor difuso de nos tornarmos dispensáveis, irrelevantes, com o advento das novas gerações de inteligência artificial. Temor de quê? Elenco três razões que me parecem bastante disseminadas: a) do desemprego, b) duma escravização às máquinas ou, para ser mais brando, c) duma condenação à inatividade entediada.

Dessas três razões, acredito não haver tantos motivos assim para temer duas, conforme detalharei mais adiante. Uma delas já está deflagrada no ambiente metropolitano. Em relação ao que advirá, o cenário é imprevisível, justamente pelo fato de que as forças do mundo ainda estão se mobilizando e reorganizando para se adaptar à nova tecnologia. Antes, porém, precisamos constatar que um dos temores apontados já se concretizou, qual seja a submissão às máquinas.

O homem metropolitano, em grande medida, submeteu-se voluntariamente ao domínio das máquinas. Não preciso explicar muito, pois o leitor sabe bem a que me refiro. Destaco somente um ponto crucial dessa dominação: a dominação da atenção. Hoje, a atenção está constante e patologicamente voltada à interpelação do dispositivo eletrônico. Volta-se o olhar para o relógio eletrônico para conferir não apenas mensagens, mas também estados rítmicos corporais. Volta-se a atenção para o dispositivo, numa busca desenfreada por ser interpelado pela última mensagem ou notificação. Uma escravidão que pode afastar o homem e a mulher dos assuntos mais importantes de seu cotidiano, mantendo-o direcionado aos temas prescritos pelo dispositivo, numa conexão sempre ativa.

Não posso afirmar se Cixin Liu, em sua obra prima “O Problemas dos Três Corpos”, pensou nisso quando escreve a respeito do único plano possível para salvar a humanidade de uma potência alienígena militarmente superior, hostil e onisciente que se aproxima da Terra. Nessa obra, o governo mundial escolhe um pequeno número de notáveis para elaborar o plano de defesa da Terra. Detalhe importante: eles não podem contar tal plano para ninguém, nem o escrever em lugar algum, tampouco sussurrá-lo ao ouvido de ninguém, sob pena de ter o plano revelado aos ouvidos onipresentes do inimigo. Podem simplesmente pensar no plano. Que metáfora excepcional para a consciência humana como o último bastião de defesa contra o leviatã da hiper conectividade!

A atenção é esse bastião da consciência humana que precisa ser preservado com vigor por cada um. Apenas para ficar com o que me vem à memória, menciono os trabalhos de Henri Bergson e Jules Payot, que explicam e defendem essa instância como o núcleo do livre arbítrio. Se o entregamos, tornamo-nos pessoas que meramente respondem a condicionamentos, de maneira bastante previsível, aliás. A atenção das pessoas é o tesouro buscado por aqueles que pagam as big techs para pautar o dia a dia do homem metropolita, progressivamente submisso à escravidão da máquina.

Mas passemos rapidamente adiante. Não é por causa disso que me propus a escrever essas linhas. Quero falar da inteligência artificial, ou melhor, de uma situação de engano a respeito de nós mesmos que nos leva a temer a inteligência artificial.

O temor da irrelevância do trabalho frente as máquinas cada vez mais inteligentes caminha junto a uma sensação de inutilidade. Se alguém é inútil, não deve receber por nada e permanece desempregado, sem condições materiais para si e para os seus. O trabalhador hodierno teme tornar-se inútil, irrelevante e encostado. Porém, pior do que ser inútil, é sentir-se inútil. É deprimente, repugnante e vergonhoso.

Tal temor passa também por uma sensação de irrelevância, na medida em que se percebe que as tarefas do cotidiano do trabalho vão sendo progressivamente absorvidas por automatizações que podem não deixar nada para o homem fazer. A história das máquinas demonstra uma progressiva ocupação destas nas atividades originalmente exercidas pelo homem. A primeira geração de máquinas veio para substituir a força e o cansaço dos homens. A segunda, para substituir suas mãos. A terceira, para substituir certas atividades mentais de baixa complexidade. Agora chegam para substituir o próprio trabalho intelectual.

Esses dois temores, a meu ver, carecem de fundamento, pois se baseiam em premissas falsas. E quais são elas? Vejamo-las:

a) Uma compreensão errada do que sejam as finalidades do trabalho humano;

b) Uma compreensão errada do que seja o trabalho intelectual profissional.

Expliquemos a primeira, que fala das finalidades do trabalho humano.

O trabalho tem duas finalidades, mas o mundo só enxerga uma. A primeira finalidade é seu caráter objetivo, ou seja, aquilo que produz ou transforma. O parecer elaborado, o sapato fabricado, a aula proferida, a missa rezada, etc. Por ele é que se paga. Por sua vez, a segunda finalidade é a subjetiva, ou seja, a transformação que o trabalho opera em quem o faz. Tal transformação é evidente em trabalhadores experientes e mestres em sua arte. As mãos do pianista, o corpo do ginasta, a mente do pregador, a habilidade do negociador, entre tantas outras. Essa transformação não é remunerada, sendo simplesmente indicador de uma possibilidade de remuneração.

Ainda que, pela ascensão do trabalho das máquinas, o trabalho humano se torne desnecessário do ponto de vista objetivo, continuará necessário do ponto de vista subjetivo. Vislumbro possibilidades de crescimento de trabalhos para atividades esportivas, competitivas, artísticas, poéticas, agremiativas, festivas, religiosas, entre outras. O problema é a questão da remuneração de tais trabalhos, que precisará ser debatida em algum momento do futuro. O homem não é útil ou inútil em decorrência do que produz, mas do que é, do trabalho que desempenha em si mesmo e das atividades não remuneradas que é capaz de abraçar. Isso precisa ser anunciado com urgência.

Agora, por fim, passemos às segunda premissa falsa, justamente a que trata da noção que se tem do trabalho intelectual.

Jules Payot, em sua obra “O Trabalho Intelectual e a Vontade”, diferencia trabalho intelectual de tarefa. Ambas são atividades intelectuais, mas apenas a primeira tem valor. Fichar um livro lido é uma tarefa. Buscar referências bibliográficas é uma tarefa. Elaborar uma forma nova de compreender o fenômeno investigado é trabalho. Segundo o professor francês, um trabalhador intelectual vigoroso não dedicará mais do que uma ou duas horas por dia a essa atividade superior. Passará o resto de seu dia dedicando-se a tarefas intelectuais e, conforme recomenda, a atividades físicas e sociais. Pelo que se constata até o momento, todas as atividades desempenhadas pela inteligência artificial têm caráter de tarefa.

Mas é disseminada a confusão entre tarefa e trabalho intelectual. Isso é especialmente grave nas profissões liberais, dentre as quais recordo a Engenharia, na qual o pendor mecanicista de seus profissionais os faz planificar e padronizar boa parte de suas atividades. Tal prática, o mundo contemporâneo revela, traz ganhos de produtividade individuais e corporativos. Mas termina por criar uma falsa consciência do que vem a ser a atividade de Engenharia em seus representantes.

Engenheiros não são aplicadores de regras, seguidores de fluxogramas ou pilotos de computador. Muito embora realizem tais tarefas constantemente, precisam compreender que sua atividade profissional, de natureza intelectual e autônoma, tem níveis de complexidade que superam em larga medida as tarefas que desempenham. Precisam tomar consciência do uso que fazem de sua experiência e capacidade analítica, duramente conquistadas em seu processo de formação e desenvolvimento profissional, em seu agir. A inteligência artificial, na forma em que se apresenta, não atinge tais níveis de complexidade.

É preciso reconhecer, contudo, que grassa entre a classe profissional atitude pouco autônoma e consciente. São esses os profissionais que se deixarão tornar inúteis e irrelevantes. Esses precisam temer a inteligência artificial. Também não pretendo dizer que a nova tecnologia não apresente ameaças aos trabalhadores e profissionais. Apresenta sim. Vislumbra-se risco de aprofundar a disparidade de renda, de suprimir a autonomia das profissões liberais, et caterva. Mas nosso argumento de hoje concentra-se sobre outra face da questão.

Em tempos de inteligência artificial, o homem precisará, cada vez mais, aprender a ser homem.

Obras citadas

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Memorial de Fr. João Benedito, OFM Conv.

A última oportunidade em que estive a sós com Fr. João Benedito foi há dois meses. Era fim de março e eu iria me confessar por ocasião da Semana Santa. Entre os pecados que minha consciência acusava, estavam críticas feitas em relação a meu pároco. Sentei-me no auditório do centro paroquial e aguardei minha vez sem saber quem era o confessor. Chegado meu momento, entrei na sala e avistei o pároco sentado na cadeira do confessor. Ele me saudou com um sorriso suave. Eu o saudei com um sorriso amarelo.

Recuo quatro anos e recordo os dias iniciais de seu retorno de seu exílio em Pádua. Assumia a administração da paróquia e queria um coordenador para a música. Reunimo-nos numa salinha improvisada que acumulava suas coisas trazidas do exterior, entre um cavalete de pintura e uma estante cheia de livros. Com o decurso da conversa ele descobriu que eu sabia italiano. Então levantou-se, apanhou um livro na estante e me entregou. Era a publicação italiana de sua tese doutoral que versava sobre a liturgia. Falamos sobre o belo e como sobre o corpo interage com a oração, temas caros a ele e muito abordados, tanto na tese publicada quanto em suas pregações.

Desde sua chegada, devido ao fato de ser um de seus coordenadores, busquei aproximar-me de sua pregação dirigindo o canto na missa das 19 horas, justamente a que ele costumava presidir. Nelas, provei de sua retórica e erudição ao longo destes anos. Havia dois temas bastante recorrentes em seus pregões que me tocaram especialmente. O primeiro deles eu poderia chamar de “dimensão litúrgica da fé”. O cristão adquire sua fé por meio de sua participação na liturgia. Não se deve esperar concluir uma conversão pessoal para frequentar a missa. De modo contrário, a frequência à missa será o itinerário que formará a fé do novo católico, ou do católico que retorna aos braços da Igreja. Já o segundo tema era a “explicação da Escritura a partir das próprias Escrituras”. Uma espécie de chave hermenêutica para a interpretação bíblica. Aprendi muito com Fr. João Benedito.

Conta-se que Fr. João tinha muita pressa para terminar as obras da basílica, e que isso poderia manifestar a consciência de sua iminente morte. Não sei. Tinha, talvez por característica própria de seu temperamento, um senso agudo de urgência em tudo. Logo que assumi a coordenação da música, acertamos um programa anual de reuniões para os músicos interrompido pela pandemia logo após a primeira delas. Lembro-me de vê-lo, meses depois, externalizar sua frustração pelo tempo perdido com a interrupção das atividades. Dizia que tinha pouco tempo e que já se passava um ano sem poder avançar nos projetos pastorais.

Mesmo sob a “chuva de setas” da pandemia promoveu uma grande festa para celebrar os 40 anos da paróquia. Gostava de pintar e ornou quarenta taus de madeira que eram semanalmente apresentados à comunidade na missa de domingo. Produziu uma arte alusiva à festa, mandou fazer camisetas, determinou a realização de uma solene novena e uma festa social por ocasião de sua conclusão. Sinto-me grato a ele por não deixar passar em branco essa importante data de nossa comunidade mesmo sob as piores circunstâncias.

Impulsionou a pastoral dos coroinhas. Queria mais de cem deles atuando no santuário. O número era impressionante, mas estava perto de ser alcançado por ocasião de sua páscoa. Dizia que sua experiência mais marcante até entrar no seminário foi sua atuação como coroinha e que, por isso, acreditava muito nesse serviço como um caminho de formação na fé das crianças e adolescentes. Minhas filhas pediram para fazer o curso de formação sem serem provocadas por nós e abraçaram o serviço com entusiasmo.

Suas virtudes intelectuais impressionavam mas o que talvez tenha deixado um buraco no espírito de sua comunidade foi o afeto que lhe era próprio. Afeto este que cativou minha família. Guardarei em meu espírito a imagem de minha caçula chorando copiosamente enquanto abraçava com ternura um bonequinho da basílica que ganhara na véspera. Havia recebido horas antes a notícia da inesperada morte do amado reitor.

Era muito arrojado. Há oito anos o território de um novo bairro da capital federal havia sido confiado aos cuidados pastorais dos franciscanos. Bairro este no qual, para se poder instalar um templo religioso, devia-se comprar alguma das poucas e milionárias projeções disponíveis. Valores fora do alcance da arquidiocese. Devia ser negociada a cessão ou doação de algum terreno com o governo do Distrito Federal. Já se havia decidido o patrono da futura capela e as missas ocorriam nos pilotis dos edifícios residenciais. Uma pequena comunidade daquele bairro começava a ser formada, sem se desvincular da matriz. Eu não acreditava no sucesso dessa empreitada mas, na manhã de 4 de maio de 2023, acompanhando a missa matinal, recebi a surpreendente notícia da consumação do ato de doação do terreno. Um milagre que prefigurou a constituição da basílica. Ou teria sido o contrário?

Ah, e sobre contendas civis, lembro-me da questão dos sinos. Fr. João Benedito mandou que soassem a cada hora entre as oito da manhã e seis da tarde. Alguém reclamou e o caso ganhou a mídia. Lembro-me dele sorrindo ao comentar o assunto. Sorriso de vencedor. Os sinos não pararam e dobraram por ocasião da saída de seu cortejo fúnebre. Veni vidi vici.

Por ocasião de minha derradeira confissão com ele, fui deixando o tal pecado de maledicência para o final da lista. Acabados os outros, não tive opção a não ser declarar que havia tecido críticas a um “determinado padre”. Olhou-me enigmaticamente. Teria percebido o não dito? Talvez, identificando uma raiz temperamental comum aos pecados que relatei, falou-me então algo assim: “Muitos santos tinham temperamentos muito fortes, que produziam neles pecados contra os quais lutaram durante todas as suas vidas. Mas vejamos de outra forma: o próprio temperamento era a força motriz de muitas de suas virtudes. Peça ao Espírito Santo para que o ensine a tirar proveito de seu temperamento para uma vida de santidade.” Virou a mesa. Ele era assim.

Ao lado de seu féretro, em sua missa de corpo presente, disse-lhe: “Vá em paz, meu irmão, e interceda agora no céu por nós!”.

Brasília, 18 de maio de 2023.

Silva Filho

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Sinceridade por 40 dias

Numa modorrenta tarde de final de ano, meu colega de trabalho comemorava a compra de um livro pela Internet por módicos dez reais. Perguntei qual livro era, ao que me respondeu relatando a sinopse de uma curiosa obra. O autor, jornalista alemão, se propôs a passar 40 dias sem mentir para ninguém. A sinceridade era o assunto da obra, misturado com as confusões que ele arrumou ao longo do projeto. Logo fiquei interessado pelo assunto. Dias depois, após a chegada da encomenda, o amigo me oferecia emprestada a obra. Ele não poderia ainda começar a lê-la, por causa da fila de leitura um tanto longa. Não hesitei e apanhei o livro.

Poucas vezes um livro me surpreendeu tão positivamente. Verdade, mentira, falsidade e sinceridade são assuntos eternos. Jürgen Schmieder — esse é o nome do autor — faz o leitor concluir isso logo nos capítulos iniciais, nos quais faz uma resenha um tanto caótica de citações da literatura universal e da cultura pop. É bom ler frases sobre a verdade da lavra de um Santo Agostinho misturadas a passagens bíblicas, intercaladas por trabalhos acadêmicos atuais, finalizadas com recomendações extraídas de pesquisas de Internet sobre gurus de auto-ajuda. Tudo misturado à narrativa pessoal da empreitada, num tom irreverente. Aliás, advirta-se o leitor: talvez a irreverência incomode, mas renderá ótimas risadas.

Percebe-se uma progressão dialética do assunto à medida em que avançam os capítulos. De início, o autor confunde sinceridade com espontaneidade e somente arruma confusões. Logo faz a distinção dos conceitos de verdade e inverdade, distinguindo-os da sinceridade e da falsidade. Fez lembrar-me das palavras de Roger Scruton, que nos ensina que a “sabedoria é a verdade que consola: há verdade sem sabedoria, e há consolação sem verdade.” Com o passas dos dias e das páginas, o conceito vai se refinando, à medida em que a sinceridade começa a formar novelo com o outro tema condutor do livro: o amor.

De fato, essa obra termina por ser uma obra sobre o amor. Ao revelar o projeto para a mulher, ela não demora para antecipar os problemas que poderiam surgir, e que de fato apareceram. Com os dois, damos boas risadas e passamos também a apreciar uma verdadeira relação amorosa, que faz descortinar as dimensões da verdade. A relação de amor com a família e com os amigos — e seus limites — também aparece em segundo plano e há interessantes constatações a respeito delas.

Mas a história nos cativas não apenas com amor e amizade a história cativa. O capítulo sobre a declaração de imposto de renda é hilário e consolador para os brasileiros. Em outra parte, uma verdadeira teoria dos jogos pode também ser intuída no capítulo em que Schmieder explica como jogou pôquer falando somente a verdade. Tudo misturado com aquela sinceridade nos comentários a respeito da anatomia feminina das que passavam pelos dias da Quaresma de nosso heroi.

A obra frustrou-me justamente por sua virtude. Afinal de contas, abordar a sinceridade é assunto tão apaixonante que nos faz evocar nossas próprias opiniões, vivências ou obras já estudadas. Por exemplo, não pude deixar de lembrar das lições de teologia moral onde se ensinam as condições em que faltar com a verdade é justamente o comportamento que se espera de alguém. Ficamos sempre a pensar que ele poderia ter abordado isso ou aquilo. Por outro lado, Schmieder por vezes cansa com seu falatório. Algumas páginas ou mesmo capítulos podem entediar um leitor, como eu, mais apressado e ansioso. Se ele fala tanto quanto escreve, deve cansar seus colegas de redação…

Entretanto, o balanço geral do livro é muito positivo. Aliás, se não fosse, não gastaria esse tempo todo escrevendo esta pequena resenha para dividir com os amigos. Pois para os amigos tentamos oferecer apenas coisas boas. Eis uma delas. Bom proveito!

https://www.travessa.com.br/sincero-a-historia-real-e-bem-humorada-de-um-homem-que-tentou-viver-sem-mentir-1-ed-2011/artigo/8da8b617-b2be-4f28-a08c-93cc0965068d

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2021: Ano esportivo

Aproximava-se o fim do fatídico ano de 2020. Buscando maneiras de enfrentar o sedentarismo, o sobrepeso e a ansiedade, eu abraçara o remo como esporte desde o ano anterior. Após os 40 anos, sentindo os efeitos de uma vida excessivamente focada nos estudos e no trabalho, decidira levar a sério o esporte. Incursões recentes no basquete não tinham sido decisivas e eu já não estava disposto a retomar o esporte de minha juventude, a natação. Muito rapidamente senti-me identificado com a modalidade aquática.

Mas voltemos ao ponto de largada deste ensaio. Depois de uma sessão de remo no lago Paranoá, após deixar os remos no galpão, já me preparando para sair, fui abordado por um Célio que tinha o olhar inquiridor para mim. Ele não costumava conversar comigo. Não nos conhecíamos bem, pois meu professor era — e continua sendo — Fabiano.

Ah, claro! Quem é esse sujeito? Célio Dias, professor de remo, atleta e técnico certificado. Atua como uma espécie de assessor técnico da escola de remo, orientando alguns dos alunos que desejam aperfeiçoar suas remadas. Após nos cumprimentarmos, perguntou-me:

— Você está satisfeito com seu treino?

— Acho que sim.

— Quantas vezes você treina por semana?

— Três vezes! — Foi minha orgulhosa resposta. Esse sempre fora meu auge. Mas Célio continuou com seu olhar imperscrutável e prosseguiu:

— Quantas vezes por semana você acha que deveria praticar esportes? — Agora Célio me deixava inseguro. Minha expressão deve ter mudado rapidamente enquanto eu pensava em qual deveria ser a resposta correta. Cauteloso, respondi perguntando “quatro vezes?”. Ao que ele me respondeu:

— Você deveria praticar esportes sete dias por semana!

Não me lembro como continuou nossa conversa. E isso não me importou. De início, repeli completamente a proposta, reputando-a inviável. Mas isso ficou martelando minha consciência. Era dezembro e já fazia um ano e meio que remava com frequência e disciplina, somente tendo interrompido os treinos durantes os meses de março a junho, quando a pandemia fez tudo parar. Mas não conseguia reduzir meu peso, que atingira a medonha marca dos três dígitos, acumulados especialmente a partir de 2016. Ao virar o ano, decidi realizar, ao menos em parte, essa proposta, intercalando pedaladas aos dias de remo.

Assim começou o ano de 2021, que intitulei como “ano esportivo”. Há muito para dizer sobre estes tempos, mas hoje focarei apenas o aspecto atlético.

A Brincadeira

Tentando encorajar um amigo a trilhar o mesmo caminho que eu, sugeri a ele que gamificasse o esporte. O neologismo anglicista expressa a transformação em brincadeira, em jogo, das coisas, tal qual um video-game. Desde que comecei a usar celulares da Samsung, adotei seu aplicativo de saúde e fitness para isso. Trata-se do Samsung Health, que produz gráficos e mapas das atividades desempenhadas, permitindo anotar velocidades, trajetos, calorias gastas, entre outras informações, relevantes ou não. Enfim, uma multitude de dados desejáveis para aqueles que, como eu, gostam de analisar números e estudar desempenhos. Coisa de técnicos ou de nerds, sendo este último meu caso.

Já em março, encorajado pelo amigo Edinei, comecei a registrar tudo no Strava, aplicativo bastante usado por esportistas, especialmente corredores e ciclistas, em todo o mundo. Não é muito adequado ao remo, mas quebra o galho. Com esses dois instrumentos, fui registrando e brincando com as informações que resolvi organizar e totalizar hoje, dia 30 de dezembro, à guisa de revisão anual.

Remo

Escrevi há poucos meses sobre o remo este ano, então não irei me alongar. Devido a problemas de registro do Samsung Health, somente pude consolidar os treinos de remo a partir do dia de São José, 19 de março.

Como o gráfico mostra, a distância remada foi crescendo entre os meses de março a agosto, quando foram superada a marca de 100 quilômetros em um mês. Entretanto, fortes dores nas costas, desencadeadas em meados de agosto, provocaram a interrupção dos treinos de remo nos meses de setembro e outubro, somente reiniciadas em novembro, ainda gradualmente. Ao todo, em 2021 remei, ao menos, 600 quilômetros. Desde o dia de São José, passei 78 horas sobre um barco a remo.

Ciclismo

Sem ter uma bicicleta própria, comecei o ano pedalando uma Sense Activ de minha mulher. O tamanho do quadro não era bom, mas foi com ela que comecei a aventura nas pistas. Com ela pedalei cerca de 900 quilômetros, sobretudo entre os meses de janeiro a maio. Acho que nunca havia pedalado distância assim ao longo dos 43 anos anteriores de minha vida!

Passados uns meses, comecei a buscar uma bicicleta para mim. Um horror. Os preços mais que dobraram em um ano, devido ao aquecimento do mercado de ciclismo e à brutal desvalorização do real frente ao dólar. A dúvida era a modalidade de bicicleta a adotar. Mountain Bike, urbana ou de estrada? Havia também uma categoria nova, chamada gravel, uma espécie de cruzamento entre a mountain bike e a speed. A indecisão era grande, somente atenuada após ouvir curioso conselho de um amigo:

— Todo mundo compra chuteira e passa a vida inteira jogando futebol na quadra. Desencana e compra uma speed, pô!

Assim o amigo me convenceu a me aventurar nesse tipo de bicicleta. Percebi que gostava mesmo era de pedalar na pista ou em calçadas, raramente adentrando caminhos de terra. A vocação estava bem delineada, então faltava somente encontrar a bicicleta, o que aconteceu ao final de maio. Encontrei um anúncio de um modelo interessante, com quadro adequado a meu tamanho, seminova, em Goiânia. Para lá me toquei, morrendo de medo. Mas logo que encontrei o simpático dono os temores começaram a ser dissipados. Ao longo da conversa, enquanto eu olhava a bicicleta e ele subia e descia do apartamento para apanhar ferramentas e outras coisas, fui convencendo-me de que aquela seria a compra adequada. O preço já estava previamente acertado e o pagamento foi feito na hora. Era uma Sense Criterium Race seminova, com um mês de uso. Coloquei a magrela no transbike e voltei orgulhoso para casa.

Levou pouco tempo para eu me adaptar ao estilo de pedalada, mas a transição me custou fortes e persistentes dormências nas mãos, acompanhadas de fraqueza nos dedos, que chegaram ao ponto de me impedir de tocar o violão. Cheguei a pensar em abandonar o esporte, mas pesquisas na Internet e conversas com amigos me fizeram entender o fenômeno. Eu teria que reaprender a segurar o guidão. Desde então, foram mais de 2.400 quilômetros pedalados na magrela! Sem mais delongas, vamos aos números!

Começando gradativamente em janeiro, com 58 quilômetros, fui avançando mês a mês. O auge aconteceu em maio quando, empolgadíssimo com o emagrecimento, decidi ir e voltar das sessões de remo de bicicleta. Foram 464 quilômetros naquele mês, patamar nunca mais igualado, especialmente quando decidi não mais me aventurar pela avenida L4 de manhã cedo. A estabilidade das marcas ao longo dos últimos meses do ano dão sinal de que já posso ter atingido um patamar de saturação nos treinos. Nada mais razoável para alguém que atingiu uma média de mais de seis horas de treino semanal. Não sou atleta e tenho que trabalhar e cuidar de minha família.

Alguém certa vez disse ou escreveu que são necessárias milhares de horas para formar um especialista. Penso estar distante desses milhares, mas estou bastante satisfeito com as 172 horas de pedaladas e 3.536 quilômetros percorridos sobre rodas neste ano de 2021!

Alguns Resultados

Tudo começou com um encorajamento do Célio e com a vontade de perder peso. E deu certo! O gráfico a seguir não deixa dúvidas:

Meu peso corporal caiu consistentemente de janeiro a setembro. Daí para a frente, pareceu ter dado um ligeiro rebote. Mas o sucesso é muito gratificante. E o melhor: com a saída dos quilos entraram disposição, bom humor e boa forma. A luta continuará em 2022!

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As Cerejeiras em Flor

Passando os olhos pela prateleira de livros da editora Quadrante, fui imediatamente atraído pelo título do livro. Me remetia às alamedas floridas que vi em Washington, estas mesmas imagem e imitação das ainda mais distantes e nunca vistas alamedas de Tóquio, Osaka ou Kioto. Apanhei o opúsculo e passei os olhos por sua capa, cuja arte fazia remeter à bandeira do Sol Nascente e ao cacho de flores bem conhecido. No canto inferior, um kanji. No subtítulo, “A expansão do Opus Dei no Japão”.

Interessado, saí andando com o livro em mãos pelos corredores da Chácara dos Buritis. Tinha tempo de sobra para ler o que achasse melhor. Mas o retiro espiritual não sugeria exatamente essa temática. Ainda assim, teimei e fui direto ao índice.

Sempre me senti atraído pelo Japão, por sua história, seus costumes, sua arquitetura e suas paisagens. Talvez pelo fato de ter passado boa parte da infância assistindo produções japonesas na televisão. Patrulha Estelar, Piratas do Espaço, Spectreman, Jaspion, Changeman, Godzilla ou Jiraya não apenas me entretinham, mas também povoavam meu espírito de criança com elementos da cultura pop, da música, dos grafismos e mesmo da escrita oriental. Mais recentemente, motivado por um arremedo de hobby de marcenaria, encantei-me com as engenhosas emendas sem pregos elaboradas pelos mestres carpinteiros nipônicos. Devo ainda reconhecer que uma olimpíada acabava de se encerrar em Toquio, atraindo a atenção para o distante país.

É bem verdade que, desde criança, ouvia de papai advertências acerca de uma característica ameaçadora do império japonês. Eram certamente fundadas na história recente do país, que realizou com crueldade na Manchúria, na China e na Indochina aquilo sonhado séculos atrás por outro feroz mandatário, Toyotomi Hideyoshi, que tentou cooptar, ainda no século XVI, a crescente Igreja para realizar seus projetos imperialistas. Não conseguindo o aval, baniu a fé e mandou crucificar todos os cristãos. Lendo recentemente a obra-prima do chinês Cixin Liu, confirmei essas desconfianças com a personagem Sófon, encantadora japonesa, mulher e robô, bela e fatal. Seria uma metáfora do Japão?

Sempre achei que tal veredito não podia recair sobre os japoneses e sobre sua cultura. E meu gosto pelo Japão não era de todo fora de propósito, pois todos sabemos que o Brasil abriga a maior comunidade da diáspora nipônica, determinando a constante presença de amigos, alguns desses muito queridos, dessa origem ao longo de toda minha vida. Está, pois, justificado meu interesse. Com o livro em mãos, comecei a leitura com muito gosto.

Trata-se de uma reunião de trinta e seis crônicas. Há dois fios condutores: um cronológico e outro temático. Após a introdução sobre a história da Igreja Católica no Japão, o capítulo primeiro transcreve a breve e dura sentença de Hideyoshi, que em 1597 ordena o início da matança dos fiéis católicos do arquipélago. Em seguida, a carta de um mártir e o testemunho de um sobrevivente. Mais à frente e dando um passo atrás no tempo, lemos a saga de Anjirô, jovem samurai que, fugindo da condenação, viaja para a China e faz com que os primeiros missionários cruzem o Mar do Japão para pregar o Evangelho. Saltamos então trezentos e cinquenta anos para contar a história de um convite para se visitar o Japão na primavera, quando as cerejeiras estão em flor e seu povo feliz. Uma terra já tolerante, maltratada pelas bombas atômicas e receptiva a tudo que viesse do Ocidente, pede evangelização. Começa, entre outras tantas iniciativas, a ida do Opus Dei para a Terra do Sol Nascente.

E assim se desenrola o novelo de crônicas em torno do tema do encantamento do Evangelho e suas Bem-Aventuranças sobre o espírito de tantos japoneses e japonesas. Salta aos olhos a sensibilidade característica dos autores. Cada crônica é iniciada por um pedaço de poesia, talvez um haiku, que ilumina o conteúdo e a mensagem de seu redator. Com delicadeza vou sendo sucessivamente abordado pelos textos, tal qual durante uma caminhada num jardim japonês. Fico sabendo de alguns segredos: do lindo lago que banha Quioto, de um sossegado templo budista em suas imediações, dos três macacos místicos com seu necessário ensinamento “não veja o mal, não ouça o mal, não fale o mal.”

É preciso ouvir de um oriental certas coisas sobre a própria fé para perceber o quão original ela é. O quanto ela pode trazer consolação, esperança e felicidade. Contrastá-la com as antigas e veneráveis tradições filosóficas do arquipélago. Perceber o quanto a veneração aos ancestrais é forte, a ponto de quase todos contarem a história de seus pais e avós em suas crônicas. Constatar que as religiões podem coexistir em paz quando não há um projeto de poder envolvido entre elas. Que o ritual do chá tem reminiscências da liturgia católica. Que as estátuas dos “meninos das águas” que arrodeiam uma divindade num templo budista nas imediações de Quioto representam os meninos arrancados dos seios de suas mães cheias de remorso. Que, conforme a tradição do ikebana, o bambu, a ameixeira e o pinheiro simbolizam nobres potências humanas: humildade, fortaleza e esperança.

Para um fiel católico e admirador da cultura oriental ler “As Cerejeiras em Flor” foi como um sopro de ar fresco. Além dos ensinamentos, passou frescor espiritual e esperança, como deve ser a brisa que sopra ao sopé do monte Fuji. Sem ter lido o original, notei o quanto a tradução para o português aos cuidados de Alfonso Bringas foi bem feita e eufônica. Sem dúvidas, será uma enriquecedora leitura para todos os amantes da beleza e da esperança.

Livro As Cerejeiras em flor (quadrante.com.br)

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Reminiscências da convenção da NPM – Concerto de Hector Olivera

Há dois anos e meio estive em Pittsburgh, para tomar parte da 35ª Convenção Anual da National Association of Pastoral Musicians (http://www.npm.org/). Foi uma experiência tão rica que havia muito o que partilhar. Tanto que fiquei paralisado, não sabendo por onde começar. Isso durou até hoje, quando decidi fazer as coisas por partes, mas fazê-las!

Então iniciarei hoje uma série de posts com algumas coisas que vi, escutei e gravei com meu maravilhoso Microtrack 2, da M-Audio.

A convenção aconteceu entre os dias 23 e 27 de julho de 2012, na cidade de Pittsburgh, Pensilvannia, Estados Unidos. As atividades extendiam-se das oito da manhã às onze da noite. Todo dia tinha algo de interessante para se fazer ou assistir à noite.

Na noite de quarta-feira, dia 25, apanhamos o ônibus que nos deveria levar do maravilhoso centro de convenções onde ocorria a maior parte das sessões (http://www.pittsburghcc.com/) para a catedral católica da cidade de Pittsburgh, dedicada a São Paulo (http://stpaulpgh.org/). Nela assistiríamos o virtuose Hector Olivera dar um concerto de gala no órgão daquela catedral, com cerca de 10 mil tubos (http://stpaulpgh.org/concerts/cathedral-organ/).

O concerto começou com uma imponente Toccata do compositor H. F. Micheelsen. Seu aúdio está aqui: (https://soundcloud.com/laercio-filho-2/toccata-h-f-micheelsen).

Em um próximo post compartilharei o belíssimo Prelúdio, Fuga e Variações, de César Franck.

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Canto e notação gregoriana

Quando estudei música, em conservatório e na faculdade de música, tive algumas breves lições a respeito dos modos gregorianos. Dórico, jônio, lídio, mixolídio eram alguns dos nomes que decorei, associados a escalas musicais primitivas, com suas respectivas notas diferenciais. Lembro-me do professor de guitarra ensaiando escalas modais em altíssima velocidade e do professor de harmonia ensinando harmonias modais.

Muito tempo depois, em 2011, naquele aprazível Seminário de Santo Antônio de Agudos/SP (http://www.seminario.org.br/) , ao cursar o XX CELMU (http://www.celmu.com.br/), nas aulas de canto gregoriano com Fr. Joel Postma, pude realmente entender o que são modos gregorianos. Entendi que minhas aulas de teoria musical, em grande medida, estavam equivocadas, mas isso é assunto para outra conversa.

Fr. Joel me fez entrar em contato com a notação gregoriana, com seus clivis, punctus e porrectus. Foi uma experiência muito marcante, mas que teria ficado no esquecimento se eu não tivesse, em 2013, ingressado num grupo de músicos amigos, interessados em cantar o gregoriano nas missas dominicais do Santuário São Francisco de Assis, em Brasília (http://www.taufrancisco.com.br/). Desde então, tenho me alimentado de uma gostosa dieta gregoriana, que tem me feito muito bem. Não que eu ache que as missas devessem voltar para o gregoriano (não me taxem como tradicionalista), mas é muito bom conhecer seu estilo puro, casto e inspirador para a música de hoje.

Pois bem, os cantos e os textos das missas são projetados na parede frontal de nossa igreja, então fica por conta dos músicos preparar as projeções dos cantos. Sempre que possível, colocamos as partituras com as traduções dos cantos gregorianos, e percebemos que os fiéis gostam de acompanhá-las, mesmo que não cantem. Quando cantamos algum canto do ordinário, é fácil achar na Internet imagens dessas partituras. Quando avançamos para algum canto do próprio, nem sempre é possível encontrar esses cantos.

Foi quando comecei a procurar ferramentas para editar no computador em notação gregoriana. Nós, músicos, somos acostumados a usar o Encore ou o Finale, mas eles não são muito bons com notação quadrada em pauta de quatro linhas. A surpresa agradável foi constatar que há várias ferramentas feitas sob medida para o gregoriano.

Dentre elas, destaco as contidas no projeto Gregorio (http://home.gna.org/gregorio/). Um monge da Abadia de Barroux (http://www.barroux.org/) inventou um sistema de notação muito simples, que nos permite imitar qualquer tipo de melisma da notação quadrada (Ao menos todos com os quais já me deparei!). Uma página de tutorial (http://home.gna.org/gregorio/tutorial/tutorial-gabc-01) já nos torna usuários “intermediários”.

Entretanto, a princípio esse sistema de notação exige a instalação do TEX em seu computador, que não é nada simples de se usar. Quase ia desistindo do projeto até descobrir uma ferramenta web que permite editar online em notação gregoriana e depois baixar o PDF: simples assim! (http://dev.illuminarepublications.com/gregorio/). Desde então, comecei a editar algumas músicas cujas partituras não achava na web.

O interessante para mim é que esse trabalho de edição tornou-se um verdadeiro retorno às aulas de gregoriano de Fr. Joel Postma! A ferramenta computacional é realmente muito útil para aprender o que significa o porrectus ou o liquescenter! Acho mesmo que poderia ser usada em futuras edições do CELMU com os alunos, além de ser útil para todos que venham a se interessar pelo canto gregoriano.

Abaixo, coloco um exemplo de partitura que editei. Trata-se da antífona de entrada para a Solenidade da Imaculada (8 de dezembro), que também pode ser cantada na Solenidade da Padroeira. Aliás, seu texto, retirado de Isaías 61, 10, é o mesmo de um belo hino do Pe. Sílvio Milanês (De Alegria Vibrei no Senhor), muito apropriado para festas de Nossa Senhora:

Gaudens_gaudébo_in_Domino

Gaudens_gaudébo_in_Domino

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Constituição Sacrosanctum Concilium

[Transcrição da formação do programa Músicos e Cia. de 9 de junho de 2012]

Querida Mônica Eva, Leo Nobre, Betinho Marques e ouvintes do programa Músicos e Cia.

Hoje, prosseguindo nossa série de estudos sobre documentos básicos da Igreja sobre a música litúrgica, estudaremos a Constituição Sacrosanctum Concilium. Neste ano de 2012 faz 50 anos que seu texto foi apresentado ao Concílio Vaticano II. Ano que vem, 2013, teremos o jubileu de ouro de sua solene proclamação, feita pelo papa Paulo VI, em companhia dos padres do sagrado concílio. Estamos, assim, em uma ocasião muito especial para estudá-la. Aliás, a Igreja, em todo o mundo, celebra essa efeméride: no Brasil, desde o início deste ano, a Associação dos Liturgistas do Brasil [1], com apoio da CNBB e outras organizações, vem promovendo eventos para estudar a Sacrosanctum Concilium, como o Seminário Nacional de Liturgia [2], realizado no início de fevereiro, em São Paulo. Nos Estados Unidos, as duas próximas convenções anuais da Associação Nacional dos Músicos Pastorais Católicos [3] terão como tema principal essa importante constituição. E tudo isso não é à toa: a promulgação desse documento, em 1963, é tida como um dos maiores marcos na história da liturgia da Igreja.

Vamos estudá-la, então? Seu texto completo, em português, pode ser acessado pela Internet [4]. Se quiserem o endereço exato, consultem a parte de formação da página da Pastoral dos Músicos. Uma adequada interpretação de tudo o que nela está escrito deve ser feita à luz dos outros documentos do Concílio, como Gaudium et Spes [5] e Lumen Gentium [6], mas nosso estudo será um pouco mais simples, concentrado sobre os aspectos diretamente relacionados à música litúrgica. Eu também quero mostrar a vocês que esse documento do Sagrado Concílio é uma proclamação solene de uma série de ensinamentos pontifícios que vinham sendo apresentados desde o século XIX. Não há nenhuma espécie de ruptura ou inovação extraordinária na Sacrosanctum Concilium. Vamos a ela.

Em sua primeira parte, onde fala sobre princípios gerais para a reforma e o incremento da liturgia, há um belíssimo parágrafo, o de número 7, que fala sobre a presença de Cristo na Liturgia. É importante que nós, músicos, o compreendamos bem. Vamos escutá-lo:

…Cristo está sempre presente em sua Igreja, e especialmente nas ações litúrgicas. Está presente no sacrifício da missa, tanto na pessoa do ministro, (…) como sobretudo nas espécies eucarísticas. Ele está presente por sua virtude nos sacramentos, de tal modo que, quando alguém batiza, é o próprio Cristo que batiza. Está presente na sua palavra, pois é ele quem fala quando na Igreja se leem as Sagradas Escrituras. Está presente, por fim, quando a Igreja ora e salmodia, ele que prometeu: “onde se acharem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles”.

Ele está no meio de nós! Na Sagrada Liturgia, quando o padre empresta sua voz para dizer “isto é meu Corpo”, o próprio Cristo está presente! Mas também está presente em todos os ministérios litúrgicos: de leitura, do salmista e dos músicos! O Concílio nos faz pensar profundamente sobre a envergadura do que estamos a fazer durante a liturgia. Salmodiar é fazer vibrar o ar com a própria Palavra de Cristo! Conduzir a oração da assembleia nos cantos é fazer presente entre nós o próprio Crucificado! Isso é muito sério e, ao mesmo tempo, muito gratificante e digno! Quando sujamos, com descuido e despreparo, nosso ministério de música, estamos como que jogando poeira sobre uma janela de cristal, e atrapalhando que por ela passe a luz do Sol Verdadeiro.

Mais à frente, no parágrafo 14, a constituição nos fala de outro conceito muito falado e importante: o da participação ativa. Vale lembrar que esse conceito já era proclamado sessenta anos antes, em 1903, por S. Pio X em seu motu proprio. Também foi detalhadamente explicado por Pio XII em suas famosas encíclicas Mediator Dei e Musicae Sacrae Disciplina. O que nos diz a esse respeito o Concílio?

É desejo ardente da mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação na celebração litúrgica que a própria natureza da liturgia exige e à qual o povo cristão, “raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido”, tem direito e obrigação, por força do batismo. [Grifos nossos]

Vejam como esse assunto é tratado! A participação ativa, plena e consciente na liturgia é direito e obrigação dos batizados! O próprio batismo nos dá essa graça e obrigação! Nenhum batizado pode, por preguiça ou inércia, deixar de participar com plenitude da liturgia! Mas também todos temos direito a isso! Não é lindo?

Entretanto, alguns, inclusive músicos, têm confundido essa ideia de participar ativamente na Liturgia com a ideia de participar cada vez mais, invadindo o rito integralmente. O então cardeal Ratzinger, que participou do Concílio Vaticano II, em seu livro “Introdução ao Espírito da Liturgia” [7], nos esclarece o conceito de participação ativa:

O Concílio Vaticano II indicou-nos, como uma ideia fundamental para a configuração da Liturgia, a palavra participação ativa de todos no Opus Dei, isto é, nos acontecimentos da missa. Com toda a razão (…) Infelizmente, o sentido dessa palavra facilmente leva a equívocos, pensando-se que se trata de um ato geral e apenas exterior, como se todos tivessem de — quanto mais possível tanto melhor — ver-se em ação. Contudo, a palavra participação ou ter participação remete para uma participação principal, na qual todos devem participar. (…) Nas fontes, entende-se sob actio da Liturgia a oração eucarística. (…) o cânone é certamente mais do que apenas uma alocução, ela é a actio no sentido mais elevado do termo. Pois aí acontece que a actio humana recua, deixando espaço à actio divina, que é a ação de Deus. (…) A verdadeira ação litúrgica, na qual todos queremos participar, é a ação do próprio Deus.

O cardeal Ratzinger nos esclarece que a única verdadeira ação na liturgia é a do próprio Cristo. Nós tomamos parte de sua ação, que é culminada na oração eucarística. Participar ativamente é deixar-se levar pela ação de Jesus na Sagrada Liturgia, e não propriamente “fazer coisas”. Assim, esclarecem-se todos os ensinamentos que já nos foram passados por S. Pio X e Pio XII sobre a participação ativa e consciente, que deve ser interior e exterior. Colocam-se as coisas em seus lugares, e o primeiro lugar é de Nosso Senhor!

Retornando à constituição que estamos a estudar, em seu parágrafo 21 se fala da reforma da Sagrada Liturgia. Vamos a ele:

A santa mãe Igreja, para permitir ao povo cristão o acesso mais seguro à abundância de graças que a liturgia contém, deseja fazer uma acurada reforma geral da liturgia. Na verdade, a liturgia compõe-se de uma parte imutável, porque de instituição divina, e de partes suscetíveis de mudanças. Estas, com o passar dos tempos, podem ou mesmo devem variar, se nelas se introduzirem elementos que menos correspondam à natureza íntima da própria liturgia, ou se estes se tenham tornado menos oportunos. [Grifos nossos]

Então o conceito de reforma litúrgica está ali expresso na constituição. Não há dúvidas que a Igreja se apercebia da necessidade de uma reforma. Movimentos de reforma litúrgica pipocavam na Europa desde o século XIX, como conversamos na formação da semana passada. E o que seria essa reforma, exatamente? Bem, gostaria de citar outro texto do mesmo cardeal Ratzinger, no qual ele faz uma interessante analogia da liturgia com uma pintura em uma antiga parede, que foi sendo reformada e reformada com o passar dos muitos anos. Chegou a um ponto no qual havia uma grossa camada de reboco que precisava ser retirada, de modo a fazer resplandecer o brilho original, que se perdera com a aplicação de tantas pinturas por cima da original. Aliás, essa imagem é muito parecida com a que nos apresenta o Concílio Vaticano. A liturgia precisava ser libertada de algumas coisas que escondiam seu brilho. Não se tratava de uma evolução, no sentido em que damos para “melhorias”. Ao invés disso, atualizar o espírito original e eterno da Sagrada Liturgia. Isso tem tudo a ver com nosso ministério de música, pois esse é o espírito que deve permear nosso canto e nossos hinos.

Vamos em frente! No parágrafo 28 a constituição nos dá uma “dura”:

28. Nas celebrações litúrgicas, seja quem for, ministro ou fiel, exercendo seu ofício, faça tudo e só aquilo que pela natureza da coisa ou pelas normas litúrgicas lhe compete. [Grifo nosso]

Como estou falando para o povo de Brasília, “terra dos concurseiros”, posso usar a analogia que farei. O princípio canônico que acabamos de escutar tem um paralelo no Princípio da Legalidade do Direito Administrativo brasileiro. O funcionário público só pode fazer aquilo que está escrito para ele fazer. E tem que cumprir tudo o que se determinou que ele fizesse. Assim é também na liturgia! Cada um tem seu papel: o sacerdote, o ministrante, o acólito, o leitor, o salmista, o músico e o fiel. Ninguém inventa nada: tudo já está determinado. E isso foi dito no Concílio Vaticano, tudo bem?

Agora, até que enfim, vamos pular um bom pedaço da constituição, até seu capítulo VI, que trata especificamente sobre a música sacra. Os parágrafos de 112 a 121 dão ensinamentos bem diretos em relação a música. Começa relembrando os princípios da música litúrgica proclamados nos documentos que já estivemos a estudar em nossas formações. Em seguida, nos diz que:

113. Os atos litúrgicos revestem-se de forma mais nobre quando os ofícios divinos são celebrados solenemente com canto, com a presença dos ministros sacros e a participação ativa do povo.

Então fica claro que o canto enobrece a forma a Sagrada Liturgia. O nosso canto! Em seguida, no parágrafo seguinte, a constituição fala que há um tesouro musical guardado pela Igreja que precisa ser cuidadosamente conservado e favorecido. Para que isso aconteça, sugere que, nas igrejas catedrais, haja grupos especializados de músicos, as scholae cantorum já tanto pedidas pelos papas.

Por fim, a constituição também nos fala do canto gregoriano, do canto popular religioso e dos instrumentos musicais, dando especial importância ao órgão. Vamos diretamente ao texto:

116. A Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana, o canto gregoriano; portanto, na ação litúrgica, ocupa o primeiro lugar entre seus similares (…)

Vejam que está desinformado aquele que acha que, depois do Concílio Vaticano II, passou o tempo do canto gregoriano. Conforme dizem os papas que precederam o Concílio, este canto continua sendo a expressão própria musical da Igreja Romana. Mas não é a única expressão possível, como já nos dizia Pio XII. Vejam o que a constituição nos fala sobre o canto popular religioso:

118. O canto popular religioso seja incentivado com empenho, de modo que os fiéis possam cantar nos piedosos e sagrados exercícios e nas próprias ações litúrgicas, de acordo com as normas e prescrições das rubricas.

Lembrem-se, entretanto, da distinção que se faz entre “canto popular religioso” e “música religiosa”, conforme nossas formações anteriores. E em relação aos instrumentos musicais? Vejam como nos ensina o Concílio:

120. Tenha-se em grande apreço, na Igreja latina, o órgão de tubos, instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de trazer às cerimônias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus e as realidades supremas.

No culto divino podem ser utilizados outros instrumentos, segundo o parecer e o consentimento da autoridade territorial competente, conforme estabelecido (…), contanto que esses instrumentos sejam adequados ao uso sacro, ou possam a ele se adaptar, condigam com a dignidade do templo e favoreçam realmente a edificação dos fiéis.

Então o órgão de tubos continua a ser considerado o instrumento preferido para a Sagrada Liturgia. Quantos órgãos de tubos há no Distrito Federal? Bem… deixemos isso! Para terminar nossa formação de hoje, fiquemos com os ensinamentos que o Concílio Vaticano II deixa para os compositores musicais:

121. Os compositores, imbuídos do espírito cristão, compreendam que foram chamados para cultivar a música sacra e para aumentar-lhe o patrimônio.

Que as suas composições se apresentem com as características da verdadeira música sacra, possam ser cantadas não só pelos grandes coros, mas se adaptem também aos pequenos e favoreçam uma ativa participação de toda a assembleia dos fiéis.

Os textos destinados ao canto sacro devem estar de acordo com a doutrina católica e inspirar-se sobretudo na Sagrada Escritura e nas fontes litúrgicas.

Assim, o Concílio deixa instruções para nossas composições para a liturgia. Nossa missão é cultivar e aumentar o patrimônio da música litúrgica! Que essas composições sejam para os corais, mas sejam também para o povo. Que seus textos não sejam simplesmente expressão de sentimentos religiosos dos poetas, mas que eles sejam retirados da Bíblia e das fontes litúrgicas.

Com isso, passamos hoje pela famosa, importantíssima, Constituição Sacrosanctum Concilium. Todos estão convidados a entrar no site da Internet da Pastoral da Música, onde está transcrita esta formação e onde estão todas as indicações para estudo.

Que a comunhão com o Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo seja o centro e ápice de nossas vidas, e que irradie graças abundantes sobre nosso ministério de música. Um grande abraço e até a semana que vem, se Deus quiser!

Brasília / DF, 09/06/2012


[1] O sítio da Internet dessa associação é o seguinte: <http://www.asli.com.br/>

[2] Alguns documentos publicados nesse seminário podem ser encontrados no endereço web: <http://www.cnbb.org.br/site/component/docman/cat_view/419-liturgia-e-musica-liturgica/432-seminario-nacional-de-liturgia>

[3] A página da Internet da próxima convenção da NPM pode ser acessada pelo seguinte endereço web: <http://www.npm.org/EducationEvents/convention/index.htm>

[4] O texto completo da Constituição Sacrosanctum Concilium pode ser acessado no endereço web: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html>

[5] O texto completo da Constituição Pastoral Gaudium et Spes pode ser encontrado no endereço web: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html>

[6] O texto completo da Constituição Dogmática Lumen Gentium pode ser encontrado no endereço web: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html>

[7] RATZINGER, Joseph. Introdução ao Espírito da Liturgia. 3ª Ed. São Paulo: Paulinas, 2010. pp. 127ss.

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