[Transcrição da formação do programa Músicos e Cia. de 9 de junho de 2012]
Querida Mônica Eva, Leo Nobre, Betinho Marques e ouvintes do programa Músicos e Cia.
Hoje, prosseguindo nossa série de estudos sobre documentos básicos da Igreja sobre a música litúrgica, estudaremos a Constituição Sacrosanctum Concilium. Neste ano de 2012 faz 50 anos que seu texto foi apresentado ao Concílio Vaticano II. Ano que vem, 2013, teremos o jubileu de ouro de sua solene proclamação, feita pelo papa Paulo VI, em companhia dos padres do sagrado concílio. Estamos, assim, em uma ocasião muito especial para estudá-la. Aliás, a Igreja, em todo o mundo, celebra essa efeméride: no Brasil, desde o início deste ano, a Associação dos Liturgistas do Brasil [1], com apoio da CNBB e outras organizações, vem promovendo eventos para estudar a Sacrosanctum Concilium, como o Seminário Nacional de Liturgia [2], realizado no início de fevereiro, em São Paulo. Nos Estados Unidos, as duas próximas convenções anuais da Associação Nacional dos Músicos Pastorais Católicos [3] terão como tema principal essa importante constituição. E tudo isso não é à toa: a promulgação desse documento, em 1963, é tida como um dos maiores marcos na história da liturgia da Igreja.
Vamos estudá-la, então? Seu texto completo, em português, pode ser acessado pela Internet [4]. Se quiserem o endereço exato, consultem a parte de formação da página da Pastoral dos Músicos. Uma adequada interpretação de tudo o que nela está escrito deve ser feita à luz dos outros documentos do Concílio, como Gaudium et Spes [5] e Lumen Gentium [6], mas nosso estudo será um pouco mais simples, concentrado sobre os aspectos diretamente relacionados à música litúrgica. Eu também quero mostrar a vocês que esse documento do Sagrado Concílio é uma proclamação solene de uma série de ensinamentos pontifícios que vinham sendo apresentados desde o século XIX. Não há nenhuma espécie de ruptura ou inovação extraordinária na Sacrosanctum Concilium. Vamos a ela.
Em sua primeira parte, onde fala sobre princípios gerais para a reforma e o incremento da liturgia, há um belíssimo parágrafo, o de número 7, que fala sobre a presença de Cristo na Liturgia. É importante que nós, músicos, o compreendamos bem. Vamos escutá-lo:
…Cristo está sempre presente em sua Igreja, e especialmente nas ações litúrgicas. Está presente no sacrifício da missa, tanto na pessoa do ministro, (…) como sobretudo nas espécies eucarísticas. Ele está presente por sua virtude nos sacramentos, de tal modo que, quando alguém batiza, é o próprio Cristo que batiza. Está presente na sua palavra, pois é ele quem fala quando na Igreja se leem as Sagradas Escrituras. Está presente, por fim, quando a Igreja ora e salmodia, ele que prometeu: “onde se acharem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles”.
Ele está no meio de nós! Na Sagrada Liturgia, quando o padre empresta sua voz para dizer “isto é meu Corpo”, o próprio Cristo está presente! Mas também está presente em todos os ministérios litúrgicos: de leitura, do salmista e dos músicos! O Concílio nos faz pensar profundamente sobre a envergadura do que estamos a fazer durante a liturgia. Salmodiar é fazer vibrar o ar com a própria Palavra de Cristo! Conduzir a oração da assembleia nos cantos é fazer presente entre nós o próprio Crucificado! Isso é muito sério e, ao mesmo tempo, muito gratificante e digno! Quando sujamos, com descuido e despreparo, nosso ministério de música, estamos como que jogando poeira sobre uma janela de cristal, e atrapalhando que por ela passe a luz do Sol Verdadeiro.
Mais à frente, no parágrafo 14, a constituição nos fala de outro conceito muito falado e importante: o da participação ativa. Vale lembrar que esse conceito já era proclamado sessenta anos antes, em 1903, por S. Pio X em seu motu proprio. Também foi detalhadamente explicado por Pio XII em suas famosas encíclicas Mediator Dei e Musicae Sacrae Disciplina. O que nos diz a esse respeito o Concílio?
É desejo ardente da mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação na celebração litúrgica que a própria natureza da liturgia exige e à qual o povo cristão, “raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido”, tem direito e obrigação, por força do batismo. [Grifos nossos]
Vejam como esse assunto é tratado! A participação ativa, plena e consciente na liturgia é direito e obrigação dos batizados! O próprio batismo nos dá essa graça e obrigação! Nenhum batizado pode, por preguiça ou inércia, deixar de participar com plenitude da liturgia! Mas também todos temos direito a isso! Não é lindo?
Entretanto, alguns, inclusive músicos, têm confundido essa ideia de participar ativamente na Liturgia com a ideia de participar cada vez mais, invadindo o rito integralmente. O então cardeal Ratzinger, que participou do Concílio Vaticano II, em seu livro “Introdução ao Espírito da Liturgia” [7], nos esclarece o conceito de participação ativa:
O Concílio Vaticano II indicou-nos, como uma ideia fundamental para a configuração da Liturgia, a palavra participação ativa de todos no Opus Dei, isto é, nos acontecimentos da missa. Com toda a razão (…) Infelizmente, o sentido dessa palavra facilmente leva a equívocos, pensando-se que se trata de um ato geral e apenas exterior, como se todos tivessem de — quanto mais possível tanto melhor — ver-se em ação. Contudo, a palavra participação ou ter participação remete para uma participação principal, na qual todos devem participar. (…) Nas fontes, entende-se sob actio da Liturgia a oração eucarística. (…) o cânone é certamente mais do que apenas uma alocução, ela é a actio no sentido mais elevado do termo. Pois aí acontece que a actio humana recua, deixando espaço à actio divina, que é a ação de Deus. (…) A verdadeira ação litúrgica, na qual todos queremos participar, é a ação do próprio Deus.
O cardeal Ratzinger nos esclarece que a única verdadeira ação na liturgia é a do próprio Cristo. Nós tomamos parte de sua ação, que é culminada na oração eucarística. Participar ativamente é deixar-se levar pela ação de Jesus na Sagrada Liturgia, e não propriamente “fazer coisas”. Assim, esclarecem-se todos os ensinamentos que já nos foram passados por S. Pio X e Pio XII sobre a participação ativa e consciente, que deve ser interior e exterior. Colocam-se as coisas em seus lugares, e o primeiro lugar é de Nosso Senhor!
Retornando à constituição que estamos a estudar, em seu parágrafo 21 se fala da reforma da Sagrada Liturgia. Vamos a ele:
A santa mãe Igreja, para permitir ao povo cristão o acesso mais seguro à abundância de graças que a liturgia contém, deseja fazer uma acurada reforma geral da liturgia. Na verdade, a liturgia compõe-se de uma parte imutável, porque de instituição divina, e de partes suscetíveis de mudanças. Estas, com o passar dos tempos, podem ou mesmo devem variar, se nelas se introduzirem elementos que menos correspondam à natureza íntima da própria liturgia, ou se estes se tenham tornado menos oportunos. [Grifos nossos]
Então o conceito de reforma litúrgica está ali expresso na constituição. Não há dúvidas que a Igreja se apercebia da necessidade de uma reforma. Movimentos de reforma litúrgica pipocavam na Europa desde o século XIX, como conversamos na formação da semana passada. E o que seria essa reforma, exatamente? Bem, gostaria de citar outro texto do mesmo cardeal Ratzinger, no qual ele faz uma interessante analogia da liturgia com uma pintura em uma antiga parede, que foi sendo reformada e reformada com o passar dos muitos anos. Chegou a um ponto no qual havia uma grossa camada de reboco que precisava ser retirada, de modo a fazer resplandecer o brilho original, que se perdera com a aplicação de tantas pinturas por cima da original. Aliás, essa imagem é muito parecida com a que nos apresenta o Concílio Vaticano. A liturgia precisava ser libertada de algumas coisas que escondiam seu brilho. Não se tratava de uma evolução, no sentido em que damos para “melhorias”. Ao invés disso, atualizar o espírito original e eterno da Sagrada Liturgia. Isso tem tudo a ver com nosso ministério de música, pois esse é o espírito que deve permear nosso canto e nossos hinos.
Vamos em frente! No parágrafo 28 a constituição nos dá uma “dura”:
28. Nas celebrações litúrgicas, seja quem for, ministro ou fiel, exercendo seu ofício, faça tudo e só aquilo que pela natureza da coisa ou pelas normas litúrgicas lhe compete. [Grifo nosso]
Como estou falando para o povo de Brasília, “terra dos concurseiros”, posso usar a analogia que farei. O princípio canônico que acabamos de escutar tem um paralelo no Princípio da Legalidade do Direito Administrativo brasileiro. O funcionário público só pode fazer aquilo que está escrito para ele fazer. E tem que cumprir tudo o que se determinou que ele fizesse. Assim é também na liturgia! Cada um tem seu papel: o sacerdote, o ministrante, o acólito, o leitor, o salmista, o músico e o fiel. Ninguém inventa nada: tudo já está determinado. E isso foi dito no Concílio Vaticano, tudo bem?
Agora, até que enfim, vamos pular um bom pedaço da constituição, até seu capítulo VI, que trata especificamente sobre a música sacra. Os parágrafos de 112 a 121 dão ensinamentos bem diretos em relação a música. Começa relembrando os princípios da música litúrgica proclamados nos documentos que já estivemos a estudar em nossas formações. Em seguida, nos diz que:
113. Os atos litúrgicos revestem-se de forma mais nobre quando os ofícios divinos são celebrados solenemente com canto, com a presença dos ministros sacros e a participação ativa do povo.
Então fica claro que o canto enobrece a forma a Sagrada Liturgia. O nosso canto! Em seguida, no parágrafo seguinte, a constituição fala que há um tesouro musical guardado pela Igreja que precisa ser cuidadosamente conservado e favorecido. Para que isso aconteça, sugere que, nas igrejas catedrais, haja grupos especializados de músicos, as scholae cantorum já tanto pedidas pelos papas.
Por fim, a constituição também nos fala do canto gregoriano, do canto popular religioso e dos instrumentos musicais, dando especial importância ao órgão. Vamos diretamente ao texto:
116. A Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana, o canto gregoriano; portanto, na ação litúrgica, ocupa o primeiro lugar entre seus similares (…)
Vejam que está desinformado aquele que acha que, depois do Concílio Vaticano II, passou o tempo do canto gregoriano. Conforme dizem os papas que precederam o Concílio, este canto continua sendo a expressão própria musical da Igreja Romana. Mas não é a única expressão possível, como já nos dizia Pio XII. Vejam o que a constituição nos fala sobre o canto popular religioso:
118. O canto popular religioso seja incentivado com empenho, de modo que os fiéis possam cantar nos piedosos e sagrados exercícios e nas próprias ações litúrgicas, de acordo com as normas e prescrições das rubricas.
Lembrem-se, entretanto, da distinção que se faz entre “canto popular religioso” e “música religiosa”, conforme nossas formações anteriores. E em relação aos instrumentos musicais? Vejam como nos ensina o Concílio:
120. Tenha-se em grande apreço, na Igreja latina, o órgão de tubos, instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de trazer às cerimônias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus e as realidades supremas.
No culto divino podem ser utilizados outros instrumentos, segundo o parecer e o consentimento da autoridade territorial competente, conforme estabelecido (…), contanto que esses instrumentos sejam adequados ao uso sacro, ou possam a ele se adaptar, condigam com a dignidade do templo e favoreçam realmente a edificação dos fiéis.
Então o órgão de tubos continua a ser considerado o instrumento preferido para a Sagrada Liturgia. Quantos órgãos de tubos há no Distrito Federal? Bem… deixemos isso! Para terminar nossa formação de hoje, fiquemos com os ensinamentos que o Concílio Vaticano II deixa para os compositores musicais:
121. Os compositores, imbuídos do espírito cristão, compreendam que foram chamados para cultivar a música sacra e para aumentar-lhe o patrimônio.
Que as suas composições se apresentem com as características da verdadeira música sacra, possam ser cantadas não só pelos grandes coros, mas se adaptem também aos pequenos e favoreçam uma ativa participação de toda a assembleia dos fiéis.
Os textos destinados ao canto sacro devem estar de acordo com a doutrina católica e inspirar-se sobretudo na Sagrada Escritura e nas fontes litúrgicas.
Assim, o Concílio deixa instruções para nossas composições para a liturgia. Nossa missão é cultivar e aumentar o patrimônio da música litúrgica! Que essas composições sejam para os corais, mas sejam também para o povo. Que seus textos não sejam simplesmente expressão de sentimentos religiosos dos poetas, mas que eles sejam retirados da Bíblia e das fontes litúrgicas.
Com isso, passamos hoje pela famosa, importantíssima, Constituição Sacrosanctum Concilium. Todos estão convidados a entrar no site da Internet da Pastoral da Música, onde está transcrita esta formação e onde estão todas as indicações para estudo.
Que a comunhão com o Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo seja o centro e ápice de nossas vidas, e que irradie graças abundantes sobre nosso ministério de música. Um grande abraço e até a semana que vem, se Deus quiser!
Brasília / DF, 09/06/2012
[7] RATZINGER, Joseph. Introdução ao Espírito da Liturgia. 3ª Ed. São Paulo: Paulinas, 2010. pp. 127ss.