Medo da Inteligência Artificial? Pense bem nas premissas sobre as quais paira sua compreensão do Trabalho Humano

Circula por aí um temor difuso de nos tornarmos dispensáveis, irrelevantes, com o advento das novas gerações de inteligência artificial. Temor de quê? Elenco três razões que me parecem bastante disseminadas: a) do desemprego, b) duma escravização às máquinas ou, para ser mais brando, c) duma condenação à inatividade entediada.

Dessas três razões, acredito não haver tantos motivos assim para temer duas, conforme detalharei mais adiante. Uma delas já está deflagrada no ambiente metropolitano. Em relação ao que advirá, o cenário é imprevisível, justamente pelo fato de que as forças do mundo ainda estão se mobilizando e reorganizando para se adaptar à nova tecnologia. Antes, porém, precisamos constatar que um dos temores apontados já se concretizou, qual seja a submissão às máquinas.

O homem metropolitano, em grande medida, submeteu-se voluntariamente ao domínio das máquinas. Não preciso explicar muito, pois o leitor sabe bem a que me refiro. Destaco somente um ponto crucial dessa dominação: a dominação da atenção. Hoje, a atenção está constante e patologicamente voltada à interpelação do dispositivo eletrônico. Volta-se o olhar para o relógio eletrônico para conferir não apenas mensagens, mas também estados rítmicos corporais. Volta-se a atenção para o dispositivo, numa busca desenfreada por ser interpelado pela última mensagem ou notificação. Uma escravidão que pode afastar o homem e a mulher dos assuntos mais importantes de seu cotidiano, mantendo-o direcionado aos temas prescritos pelo dispositivo, numa conexão sempre ativa.

Não posso afirmar se Cixin Liu, em sua obra prima “O Problemas dos Três Corpos”, pensou nisso quando escreve a respeito do único plano possível para salvar a humanidade de uma potência alienígena militarmente superior, hostil e onisciente que se aproxima da Terra. Nessa obra, o governo mundial escolhe um pequeno número de notáveis para elaborar o plano de defesa da Terra. Detalhe importante: eles não podem contar tal plano para ninguém, nem o escrever em lugar algum, tampouco sussurrá-lo ao ouvido de ninguém, sob pena de ter o plano revelado aos ouvidos onipresentes do inimigo. Podem simplesmente pensar no plano. Que metáfora excepcional para a consciência humana como o último bastião de defesa contra o leviatã da hiper conectividade!

A atenção é esse bastião da consciência humana que precisa ser preservado com vigor por cada um. Apenas para ficar com o que me vem à memória, menciono os trabalhos de Henri Bergson e Jules Payot, que explicam e defendem essa instância como o núcleo do livre arbítrio. Se o entregamos, tornamo-nos pessoas que meramente respondem a condicionamentos, de maneira bastante previsível, aliás. A atenção das pessoas é o tesouro buscado por aqueles que pagam as big techs para pautar o dia a dia do homem metropolita, progressivamente submisso à escravidão da máquina.

Mas passemos rapidamente adiante. Não é por causa disso que me propus a escrever essas linhas. Quero falar da inteligência artificial, ou melhor, de uma situação de engano a respeito de nós mesmos que nos leva a temer a inteligência artificial.

O temor da irrelevância do trabalho frente as máquinas cada vez mais inteligentes caminha junto a uma sensação de inutilidade. Se alguém é inútil, não deve receber por nada e permanece desempregado, sem condições materiais para si e para os seus. O trabalhador hodierno teme tornar-se inútil, irrelevante e encostado. Porém, pior do que ser inútil, é sentir-se inútil. É deprimente, repugnante e vergonhoso.

Tal temor passa também por uma sensação de irrelevância, na medida em que se percebe que as tarefas do cotidiano do trabalho vão sendo progressivamente absorvidas por automatizações que podem não deixar nada para o homem fazer. A história das máquinas demonstra uma progressiva ocupação destas nas atividades originalmente exercidas pelo homem. A primeira geração de máquinas veio para substituir a força e o cansaço dos homens. A segunda, para substituir suas mãos. A terceira, para substituir certas atividades mentais de baixa complexidade. Agora chegam para substituir o próprio trabalho intelectual.

Esses dois temores, a meu ver, carecem de fundamento, pois se baseiam em premissas falsas. E quais são elas? Vejamo-las:

a) Uma compreensão errada do que sejam as finalidades do trabalho humano;

b) Uma compreensão errada do que seja o trabalho intelectual profissional.

Expliquemos a primeira, que fala das finalidades do trabalho humano.

O trabalho tem duas finalidades, mas o mundo só enxerga uma. A primeira finalidade é seu caráter objetivo, ou seja, aquilo que produz ou transforma. O parecer elaborado, o sapato fabricado, a aula proferida, a missa rezada, etc. Por ele é que se paga. Por sua vez, a segunda finalidade é a subjetiva, ou seja, a transformação que o trabalho opera em quem o faz. Tal transformação é evidente em trabalhadores experientes e mestres em sua arte. As mãos do pianista, o corpo do ginasta, a mente do pregador, a habilidade do negociador, entre tantas outras. Essa transformação não é remunerada, sendo simplesmente indicador de uma possibilidade de remuneração.

Ainda que, pela ascensão do trabalho das máquinas, o trabalho humano se torne desnecessário do ponto de vista objetivo, continuará necessário do ponto de vista subjetivo. Vislumbro possibilidades de crescimento de trabalhos para atividades esportivas, competitivas, artísticas, poéticas, agremiativas, festivas, religiosas, entre outras. O problema é a questão da remuneração de tais trabalhos, que precisará ser debatida em algum momento do futuro. O homem não é útil ou inútil em decorrência do que produz, mas do que é, do trabalho que desempenha em si mesmo e das atividades não remuneradas que é capaz de abraçar. Isso precisa ser anunciado com urgência.

Agora, por fim, passemos às segunda premissa falsa, justamente a que trata da noção que se tem do trabalho intelectual.

Jules Payot, em sua obra “O Trabalho Intelectual e a Vontade”, diferencia trabalho intelectual de tarefa. Ambas são atividades intelectuais, mas apenas a primeira tem valor. Fichar um livro lido é uma tarefa. Buscar referências bibliográficas é uma tarefa. Elaborar uma forma nova de compreender o fenômeno investigado é trabalho. Segundo o professor francês, um trabalhador intelectual vigoroso não dedicará mais do que uma ou duas horas por dia a essa atividade superior. Passará o resto de seu dia dedicando-se a tarefas intelectuais e, conforme recomenda, a atividades físicas e sociais. Pelo que se constata até o momento, todas as atividades desempenhadas pela inteligência artificial têm caráter de tarefa.

Mas é disseminada a confusão entre tarefa e trabalho intelectual. Isso é especialmente grave nas profissões liberais, dentre as quais recordo a Engenharia, na qual o pendor mecanicista de seus profissionais os faz planificar e padronizar boa parte de suas atividades. Tal prática, o mundo contemporâneo revela, traz ganhos de produtividade individuais e corporativos. Mas termina por criar uma falsa consciência do que vem a ser a atividade de Engenharia em seus representantes.

Engenheiros não são aplicadores de regras, seguidores de fluxogramas ou pilotos de computador. Muito embora realizem tais tarefas constantemente, precisam compreender que sua atividade profissional, de natureza intelectual e autônoma, tem níveis de complexidade que superam em larga medida as tarefas que desempenham. Precisam tomar consciência do uso que fazem de sua experiência e capacidade analítica, duramente conquistadas em seu processo de formação e desenvolvimento profissional, em seu agir. A inteligência artificial, na forma em que se apresenta, não atinge tais níveis de complexidade.

É preciso reconhecer, contudo, que grassa entre a classe profissional atitude pouco autônoma e consciente. São esses os profissionais que se deixarão tornar inúteis e irrelevantes. Esses precisam temer a inteligência artificial. Também não pretendo dizer que a nova tecnologia não apresente ameaças aos trabalhadores e profissionais. Apresenta sim. Vislumbra-se risco de aprofundar a disparidade de renda, de suprimir a autonomia das profissões liberais, et caterva. Mas nosso argumento de hoje concentra-se sobre outra face da questão.

Em tempos de inteligência artificial, o homem precisará, cada vez mais, aprender a ser homem.

Obras citadas

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Uma resposta para Medo da Inteligência Artificial? Pense bem nas premissas sobre as quais paira sua compreensão do Trabalho Humano

  1. Muito bom! De fato, compreender não só a noção de trabalho humano, mas a própria noção de inteligência, para sobreviver a essa onda.

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